A racionalidade prática do professor é elemento constitutivo de sua cultura profissional.


UM DIÁLOGO ENTRE AS TEORIAS PEDAGÓGICAS DE PAULO FREIRE E VYGOTSKY NA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EJA

17/06/2010 13:52

 

UM DIÁLOGO ENTRE AS TEORIAS PEDAGÓGICAS DE PAULO FREIRE E VYGOTSKY NA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EJA[1]

Jefferson Falcão Sales[2]

 

 

Introdução

 

            Estou convicto de que todo trabalho acadêmico apresenta muito da singularidade experiencial de seu autor. Quando foi sugerida a escolha de um dos autores discutidos para a realização de um paper busquei a conciliação do tema que pesquiso e trabalho, com as teorias pedagógicas estudadas na disciplina em evidência. A teoria de aprendizagem de Vygotsky despertou minha atenção e me reportou os pensamentos e escritos de Paulo Freire. Neste sentido, resolvi realizar um confronto dialógico entre estes dois teóricos na perspectiva da educação de jovens e adultos e da formação de seu professor – temática que investigo.

Compromisso político-social com a formação educacional das classes populares.

            Freire e Vygotsky foram envolvidos com o seu mundo, seu tempo e a realidade que os rodeava. Eram preocupados com os problemas que assolavam a população de suas épocas: fome, desemprego, miséria opressão, e, sobretudo o analfabetismo. Na perspectiva freiriana o analfabetismo era uma forma de castração dos sujeitos. Na vygotskiana era uma forma de interrupção no processo de desenvolvimento. Ambos consideravam o analfabetismo um resultado de uma sociedade desigual e injusta e buscaram sua gênese histórica e suas conseqüências na vida dos sujeitos (Moura, 1999).

            Em seus escritos, está claro, a posição dos dois com relação às causas do analfabetismo que, segundo eles, não estão relacionadas apenas a questões de ordem política, econômica e social, mas também a questões psicopedagógicas. Assim, denunciam as práticas pedagógicas alfabetizantes desenvolvidas nas escolas, onde a alfabetização é concebida como um ato mecânico de codificação alfabético. Criticam ainda, a forma como os professores e as escolas entendem e ensinam à linguagem escrita, a forma como lidam com os educandos, mas principalmente, a sistemática de avaliação utilizada que supervaloriza o erro e reconhece o momento (prontidão) para aprender. Estas denúncias podem explicar os altos índices de evasão e reprovação na educação de jovens e adultos, mas de forma privilegiada explica os alarmantes índices de analfabetismo entre crianças, jovens e adultos.

            Preocupados com a realidade perversa do analfabetismo, cada um em seu tempo resolveu elaborar e construir meios para mudança de tão triste realidade educativa. Freire resolveu implantar no SESI um programa de educação de adultos[3] que atendesse aos adultos trabalhadores analfabetos. Já Vygostky, concentra esforços para investigar a relação entre o analfabetismo e o comportamento dos trabalhadores[4]. Apesar da distância histórica, estes teóricos convergem no âmbito da valorização e preocupação com a educação (alfabetização) das classes desfavorecidas e excluídas pelos sistemas sociais em que estavam inseridos. Essa preocupação comum aos dois está aliada à coerência que sempre tiveram em estabelecer a vinculação entre a teoria e a prática, entre a pesquisa e o ensino, entre ação e reflexão e a rejeição a toda e qualquer postura idealista, mecanicista e voluntarista, e, principalmente a toda forma de conhecimento que traduza uma visão fatalista e/ou messiânica de ver o mundo, a educação e, conseqüentemente, a alfabetização (Ibidem).

            Partindo desta concepção de educação, dirigem aos professores um olhar especial, apontando para a necessidade de desenvolverem uma educação libertadora (Freire, 1983) e se apresentarem como mediadores no processo de ensino e aprendizagem dos alunos. (Vygotsky, 1994). Assim, os educadores se aproximam das necessidades e interesses sociais e individuais dos alunos, tendo no diálogo (linguagem) um aporte imprescindível no processo educativo.

A palavra como mediadora da educação libertadora.

            Conforme afirmado anteriormente, Freire e Vygotsky entendem a alfabetização como uma atividade criativa, dinâmica na busca de aprender a palavra (linguagem), superando a visão reducionista de considerá-la um ato de memorização mecânica das letras, palavras, etc. Deste modo atribuem à linguagem verbal[5] um papel primordial no processo de aquisição da leitura e da escrita pelos sujeitos e em suas vidas.

            Segundo Vygotsky, a palavra é o signo por excelência, responsável pelo desenvolvimento cultural dos sujeitos. A palavra é o signo cultural de mediação fundamental, responsável pela transformação das funções naturais de inteligência do sujeito para as funções superiores (ibidem). Paulo Freire apresenta a palavra como núcleo fundamental do diálogo entre os homens onde estão implicadas duas dimensões: ação e reflexão (práxis). A palavra é a mediação entre os homens e o mundo, a propulsora de sua transformação política e social (Freire, 1983).

            Com respeito à linguagem escrita, o teórico russo afirma que ela é um instrumento fundamental de comunicação e desenvolvimento da memória. Mostra que a apropriação da linguagem escrita é resultado da relação entre o desenvolvimento da linguagem verbal, do pensamento e da representação da realidade. Argumenta que essa representação se faz a princípio em forma de rascunho mental, através do pensamento, da interiorização, para alcançar com o processo de ensino e aprendizagem à produção da linguagem, enquanto instrumental vital da comunicação real (Vygotsky, 1994).

            Neste sentido, os dois atribuem um valor todo especial as diferentes formas de linguagem, pois é partir delas que germinam as sementes do processo de aquisição de qualquer conhecimento para humanidade. Isso representa uma importante contribuição à educação de pessoas adultas que carregam diversos tipos de conhecimentos advindos de suas experiências existenciais que precisam ser valorizados e questionados através do processo de comunicação dialógico, onde professor e aluno interagem de forma horizontal construindo possibilidades para concretização de uma educação realmente libertadora e respeitadora da diversidade sócio-cultural dos educandos.

O contexto sócio-cultural da aprendizagem e o papel da escola e dos professores.

            De acordo com a concepção de alfabetização de Freire e Vygotsky está evidenciado que os educandos são considerados por eles sujeitos cognoscentes e ativos que caminham em busca do conhecimento através das relações socioculturais. Dão destaque especial as influências socioculturais na aprendizagem e refletem a partir da capacidade dos aprendentes aprenderem e se desenvolverem através do trabalho, das relações produtivas, ou seja, através das relações culturais e sociais. Freire (1983) defende que a criatividade e as finalidades que se encontram nas relações entre os seres humanos e o mundo estão contextualizadas historicamente e culturalmente. Vygotsky (1994) afirma que o desenvolvimento das funções superiores do homem não está limitado a uma evolução fisiológica e biológica, abrange, sobretudo, a dimensão histórica e cultural dos sujeitos.

            Herdam do materialismo histórico-dialético a concepção de que a intervenção do homem sobre a natureza e sua transformação, advém do trabalho. Freire (1983) acredita que essa transformação se dá a nível da consciência política, e Vygotsky (1994) no alcance das funções superiores da inteligência. Assim, concebem o educando adulto como portador e produtor de cultura, um sujeito capaz, e provido de experiências que necessita de uma intervenção de instituições culturais que possibilite o desenvolvimento de suas potencialidades latentes.

            Tradicionalmente, a escola é considerada a instituição cultural por excelência. No pensamento freiriano ela encontra um lugar de destaque na promoção das relações dialógicas indispensáveis, para superação do estágio da consciência ingênua para o alcance da consciência crítica que promove à aprendizagem que, por sua vez, conduz a transformação da realidade. Então, nas escolas faz-se necessário que os educadores despertem para essa atitude dialógica em suas salas de aula

“para que façam realmente educação e não domesticação. Exatamente porque, sendo o diálogo uma relação eu-tu, é necessariamente uma relação de dois sujeitos. Toda vez que se converta o tu desta relação em mero objeto, se terá pervertido o diálogo e já não se estará educando, mas deformando” (FREIRE, 1983: 115). 

 

            No pensamento vygotskiano, os estabelecimentos de ensino encontram também posição privilegiada. A função da instituição cultural é promover um ensino que possibilite a expansão da zona de desenvolvimento proximal, responsável pela aprendizagem dos sujeitos. Para elaborar as dimensões do aprendizado escolar, Vygotsky descreve o conceito de zona de desenvolvimento proximal como sendo

“a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (VYGOTSKY, 1994: 112).

 

            No que concerne tanto o processo dialógico como a zona de desenvolvimento proximal, os professores são colocados como atores principais da cena que resultará na aprendizagem dos alunos. Freire (1983) os considera agentes político e Vygotsky (1994) mediadores. No entanto, para que eles se tornem mediadores conscientes de seus papéis sóciopolítico-formativos, necessitam de uma formação permanente que lhes possibilite saberes e capacidades no âmbito do planejamento, execução e avaliação das práticas pedagógicas que obedeçam tanto os procedimentos psicológicos[6] propostos por Vygotsky, como os de codificação e descodificação[7] propostos por Freire.  

A formação do professor da Educação de Jovens e Adultos.

                        Consideramos as idéias dos dois teóricos em discussão como contribuições aos alfabetizadores e educadores de pessoas jovens e adultas no sentido de rever os seus processos de formação e avaliar as práticas que desenvolvem. Nas teorias freiriana e vygotskiana encontram-se elementos que auxiliam o planejamento, a prática e avaliação do processo de ensino e aprendizagem pelo docente. Encontramos ainda, contribuições de caráter didático-pedagógicas que permitem a definição e seleção de processos metodológicos mais significativos e eficientes à educação de jovens e adultos.

            Dentre estes processos metodológicos está a dialogicidade que deve ser o princípio norteador de toda prática em EJA. Através da interação dialógica entre educadores e educandos emergem todos os pressupostos para o trabalho do docente em EJA:

  • Conhecer os seus alunos, suas preferências e experiências de vida;
  • Traçar o perfil cognitivo e sócio-afetivo de seus alunos;
  • Refletir e criar formas de trabalho que atendam as necessidades apresentadas por seus alunos.
  • Construir um sistema de avaliação que permita a re-inclusão do aluno jovem e adulto no processo de ensino e aprendizagem.

Partindo destes pressupostos encontramos as especificidades da educação de jovens e adultos que devem ser consideradas no momento de elaboração do seu currículo com o intuito de se efetuar um bom ensino. Através do bom ensino, o professor desafia o nível que o sujeito está não desrespeitando seus conhecimentos e experiências anteriores, tendo o olhar para o futuro, para as capacidades que desenvolverá, possibilitando a socialização das experiências culturais acumuladas historicamente pela humanidade e, conseqüentemente, responsáveis pela promoção do acionamento das zonas de desenvolvimento proximal dos alunos (Moura, 1999).

Neste sentido, a formação do professor de EJA deve seguir as idéias de Freire e Vygotsky, pois ambas as teorias desenvolvidas por estes pesquisadores dão ênfase ao trabalho docente como fundamental na aquisição de conhecimentos críticos e sistemáticos pelos adultos. Um programa de formação de professores de EJA não pode deixar de considerar três categorias freirianas básicas:

  • Não há docência sem discência;
  • Ensinar não é transferir conhecimento;
  • Ensinar é uma especificidade humana (Freire, 1998).

Estas categorias acima estão presentes no livro Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire, onde ele faz uma análise a respeito da problemática da formação de professores concomitante com uma reflexão sobre a prática educacional voltada para o desenvolvimento da autonomia dos educandos. Na construção desta autonomia pelos alunos aparecem de forma contundente mais três categorias básicas para um programa de formação de professores de EJA, mas agora de natureza vygotskiana:

  • A aprendizagem humana é resultado das interações sócio-cultural.
  • Zona de Desenvolvimento Proximal
  • Professor como mediador da aprendizagem dos alunos;

Estas categorias põem o professor diante de uma nova postura em relação aos educandos que passam a ser formados de acordo com sua gênese histórico-cultural.

            Conforme (Moura, 1999), Paulo Freire e Vygotsky formularam propostas pedagógicas norteadoras às políticas de formação de educadores de jovens e adultos. Concordando com esta pesquisadora, concluímos esta reflexão reafirmando que as teorias pedagógicas analisadas e confrontadas neste texto trazem relevantes contribuições à formação de professores da educação de jovens e adultos. 

 

 

Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 6ºed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

_____________. Pedagogia da Autonomia. 2ºed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

_____________. Pedagogia da Esperança. 6ºed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

_____________. Pedagogia do Oprimido. 11ºed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

MOURA, Tânia Maria de Melo. A Prática Pedagógica dos Alfabetizadores de Jovens e Adultos: Contribuições de Freire, Ferreiro e Vygotsky. Maceió: EDUFAL, 1999.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 5ºed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

________________. Teoria e Método em Psicologia. 3ºed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

             

           

           

           

 

 

 

 

 



[1]Trabalho realizado como requisito para conclusão e aprovação da disciplina Teorias da Educação e Formação de Professores ministrada pela Profa. Dra. Marcília Chagas Barreto e pelo Prof. Dr.Ântônio Germano Magalhães Junior.

[2] Mestre do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

[3] Este programa foi implantado por Paulo Freire quando foi coordenador da divisão de educação do SESI de Pernambuco em 1947. Segundo ele, está experiência se constituiu como um momento indispensável à gestação do seu livro Pedagogia do Oprimido. (Freire, 1999)

[4] Pesquisa coordenada por Vygotsky em 1930 e desenvolvida por Luria e outros pesquisadores.

[5] Vygotsky (2004) afirma que na fala reside a fonte do comportamento e da consciência. Freire (1982) afirma que a “fala” se constitui centro do seu método dialógico.

[6] Vygotsky (1994) na explicação do processo de aprendizagem usando a teoria da zona de desenvolvimento proximal põe os educadores na mediação de um processo psicológico que vai exigir deles metodologias, didáticas, e conhecimentos propícios ao ofício de ensinar.

[7] Paulo Freire (1982) entende que o processo de conscientização primeiro se passa pela codificação que representa conteúdos existenciais dos sujeitos, para depois alcançar o nível de descodificação que representa conhecer o que está para além dos conteúdos existenciais alcançando o nível crítico da realidade.

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